Pode a igreja rica do Ocidente, ser a Sodoma Moderna de hoje?
Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã: Soberba, fartura de pão, e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do pobre e do necessitado. -Ezequiel 16.49-
No verso acima, e em todo contexto imediato do capítulo 16, o profeta Ezequiel brada sua voz contra o povo de Jerusalém. Sua denuncia era que o povo de Deus tinha ser tornado tão perverso quanto o povo de Sodoma. E não pense que Deus estava falando apenas da imoralidade sexual, como todos nós costumamos associar quando ouvimos falar da cidade de Sodoma. Pensar deste modo é se apegar a uma visão bastante parcial e relativa.
Qual era o pecado então? Ora, o que diz o texto? O povo de Sodoma se tornou, em virtude de sua ganância materialista (fartura de pão), um povo absolutamente omisso em relação ao pobre e necessitado. E por isso foi destruído.
E como a igreja rica do Ocidente tem se comportado? Porque é tão raro ouvirmos nossos profetas condenando a omissão pecaminosa em relação aos pobres? Porque não ouvimos falar em nossas igrejas acerca dos 30 milhões de famintos que morrem por dia e de 2/3 da população mundial que mal tem o que comer? Ronald J. Sider questiona em relação a nossa omissão em seu perturbador livro "Cristão ricos em tempo de fome": Porque será? Será que temos permitido que nossos interesses econômicos e egoístas torçam a interpretação das Escrituras?
Ronald Sider não é um cristão comum. Não por ser PhD em história da Reforma por Yale, uma das mais prestigiadas universidades dos Estados Unidos, ou por ter escrito um livro que é considerado referência cristã no século 20, Cristãos ricos em tempo de fome, que já vendeu mais de 400 mil cópias. É que, aos setenta anos de idade, ele é testemunha de uma mudança de comportamento da Igreja Evangélica, que, no seu entender, fez dela uma instituição mais insensível em relação ao mundo que a cerca. "Ficamos maiores, mais ricos e mais famosos", sintetiza. Tal conclusão é a base do inquietante trabalho de Sider. Teólogo, professor, palestrante, fundador e presidente do ESA (Evangelicals for Social Action "Evangélicos por Ação Social"), ele é um ativista da igualdade. E o faz pelo viés do convencimento dos cristãos acerca da justiça social.
Ronald Sider esteve no Brasil pela primeira vez no fim de agosto, a fim de participar do encontro nacional da Rede Evangélica Nacional de Ação Social, a Renas, no Rio de Janeiro. Na ocasião, conversou com a reportagem de CRISTIANISMO HOJE:
CRISTIANISMO HOJE:
Em seu livro, o senhor defende que a Igreja precisa se arrepender. De quê?
RONALD SIDER:
Quando eu era jovem, quase todos os líderes cristãos diziam que a missão da Igreja era o evangelismo, mas eram muito pouco preocupados com ministérios sociais ou com a luta por justiça econômica. Nós negligenciamos isso por muito tempo, e é algo de que precisaríamos nos arrepender. Outro ponto sobre o qual a Igreja precisa pedir perdão é por séculos e séculos de esquecimento em relação a tantos versículos bíblicos que nos mandam olhar pelos pobres. Por muito tempo, esse tem sido um tema esquecido em nossas igrejas. O pastor Rick Warren [dirigente da Igreja de Saddleback e autor do best-seller Uma vida com propósitos] confessou isso há uns sete anos. Nós precisamos nos arrepender por termos negligenciado os mandamentos bíblicos de compromisso com os pobres; parece que simplesmente não lemos uma boa parte da Bíblia.
E em relação ao papel da Igreja na sociedade?
Essa é justamente a terceira área em que, na minha opinião, precisamos, como cristãos, de arrependimento. Nossa ação política sempre foi biblicamente desequilibrada. Nossos representantes falam muito contra o aborto, ou sobre temas como família e sexualidade que, evidentemente, são preocupações pertinentes , mas quase nada sobre justiça social, combate à pobreza ou questões ambientais, que também são bíblicas. Ora, se são políticos e cristãos, é preciso que se importem com o que Deus se importa: com os pobres, com a prática da justiça e com o meio ambiente.
Um de seus livros mostra que a vida de um cristão praticamente não difere da de um não-cristão...
Não posso falar do Brasil, mas, nos Estados Unidos, certamente não difere. Existe em mim uma voz bastante otimista que me diz, com alegria, que estamos avançando, aproveitando as oportunidades para fazer diferença. Mas existe uma outra voz, pessimista, que me alerta que não fazemos diferença alguma. Entre os jovens, por exemplo, há uma pequena mudança no comportamento sexual dos crentes, mas não muito grande. Dentro das denominações evangélicas dos EUA, o número de casos de abuso físico e sexual entre membros de uma mesma família praticamente não difere do restante da sociedade. Em termos de racismo, nós, cristãos, somos piores que os outros e não reconhecemos que o sistema da nossa sociedade, que tendemos a reproduzir, é discriminatório em relação aos latinos e outra minorias.
Os crentes, em geral, veem o pecado como algo individual. Mas a Bíblia fala, e o senhor tem dito em seus livros, que há um pecado social. Como é esse conceito?
No último meio século, os evangélicos têm dado muita ênfase aos pecados individuais, como adultério e imoralidades sexuais. Nessa época, eram os liberais que falavam do pecado social, como os sistemas econômicos injustos. O que eu disse no meu livro Cristãos em tempo de fome é que a Bíblia fala dos dois tipos de pecado, o individual e o social, mas que os evangélicos tendem a personalizar o pecado. É lógico que, teologicamente, somos valorizados enquanto indivíduos, que precisam tomar uma decisão pessoal e desenvolver um relacionamento individual, íntimo com Deus. Mas a sociologia nos ensina que o ambiente onde vivemos também determina quem somos. Afinal, nossas atitudes também são afetadas pelo que nos cerca. Tanto a sociologia quanto a Bíblia nos mostram a importância de mudarmos o indivíduo e também a sociedade.
O gigantismo das igrejas urbanas de classe média, cujos pastores são cada vez mais parecidos com executivos, é parte desse problema da cultura do crescimento?
Eu, pessoalmente, não sou entusiasta de igrejas enormes, mas não me oponho a elas. Temos grandes ministérios, que precisam ser gerenciados de maneira diferente mas o problema não é este, especificamente. É uma questão de visão pessoal. Se a igreja está levando pessoas a serem como Cristo, a se tornarem obedientes a ele, preocupadas com o próximo e ativas no serviço social, não há problema se ela é grande ou pequena. Acho que até existe mesmo espaço para um papel de executivo dentro da liderança das congregações. O problema é o momento em que se direciona o ministério com técnicas do mundo executivo, visando a desenvolver estratégias para o crescimento da igreja, e esse processo tira nosso foco de Jesus e do que ele disse.
O senhor escreveu seu livro mais famoso há mais de trinta anos. Algo mudou de lá para cá?
Eu acho que os cristãos evangélicos, na média, são muito mais materialistas hoje do que quando escrevi o livro. Essa é a notícia ruim. A boa é que há um grande crescimento da preocupação evangélica com os pobres. O próprio livro é um exemplo disso numa eleição dos livros cristãos mais importantes dos últimos 50 anos, minha obra ficou na sétima posição. Isso pode não dizer muito, mas mostra que ao menos há uma preocupação com o tema, um crescimento da ação evangélica nessa área. Basta ver a Visão Mundial, uma entidade cristã que tomava conta de alguns orfanatos no passado e que hoje tem um orçamento de dois bilhões de dólares por ano. No entanto, esses cristãos comprometidos com justiça social ainda são minoria. Hoje, o cristão médio e volto a lembrar que refiro-me ao crente americano, pois não possuo tanta informação sobre a Igreja no Brasil é mais rico e mais materialista do que o da geração anterior. Mas os dados mostram que estamos doando bem menos do que há tempos atrás. O crente de hoje doa apenas 40% do que os cristãos de algumas décadas atrás. E esse índice tem caído ano a ano.
Essa percepção é a mesma nos países do Terceiro Mundo?
É diferente, mas aqui já é possível começar a ver uma classe média evangélica. O que eu acho preocupante é que a teologia da prosperidade é tão ruim aqui como nos Estados Unidos.
Algumas estatísticas preveem que até a metade deste século o Brasil será uma nação de maioria evangélica. Isso faz diferença?
Num certo nível, é irrelevante quantas pessoas dizem ser evangélicas. O importante é saber quantas pessoas vivem como Jesus e acreditam nele como Senhor e Salvador. Que diferença faz se metade de um país se confessa evangélica, se a taxa de divórcios nessa comunidade é igual à do resto da sociedade? Por outro lado, ainda que sejamos minoria, se liderarmos o combate à pobreza, se defendermos a criação de Deus, combatermos o racismo e afirmarmos a dignidade de setores marginalizados, aí, sim, estaremos mudando a sociedade e sua cultura. Isso seria verdadeiramente significativo! Mas se tivermos uma maioria evangélica e ela viver como os outros, qual a importância?
Aos 70 anos de idade, o senhor se considera um cristão inconformado?
Olha, como eu gosto da história da Igreja, que é o meu campo de formação, ela me ensinou que a maior tentação do cristianismo durante todos esses séculos foi o de se conformar com a cultura vigente e deixar de seguir Jesus, vivendo de maneira bíblica. Os exemplos são muitos, desde a Igreja medieval. Nós temos sempre que nos perguntar onde essa cultura satisfaz a Deus e onde precisa ser modificada, à luz da Bíblia. Nós precisamos adotar uma posição de permanente crítica ao establishment. O problema é que os cristãos, ao longo da história, começaram a abraçar a cultura ocidental. Devagar, sem perceber, começamos a fazer parte dela. O problema que vejo hoje nessa cultura é o individualismo. Isso vai de encontro ao que a Bíblia define como comunidade. Quando as pessoas procuram a web, ou redes sociais, na verdade buscam uma comunidade e a Igreja de Cristo tem a obrigação de adotar uma visão bíblica que valorize o indivíduo, mas também a de ser o lugar onde uma comunidade é oferecida. Ali, o amor dos irmãos e suas necessidades devem ser compartilhados, assim como os bens materiais, e os marginalizados precisam ser acolhidos. Onde existe solidão, a Igreja precisa oferecer uma solução.
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